Há algumas décadas atrás, eu era um garoto, e como
qualquer garoto, eu tinha alguns amigos. Morávamos em um bairro afastado do centro
de São Paulo. Certo dia após um convite deste amigo meu, eu e meu irmão fomos
brincar na casa dele. A mãe deste meu amigo era costureira e trabalhava em um
dos cômodos da casa deles. E lá estávamos nós brincando, não me recordo do quê,
apenas sei que ela deixava que brincássemos ali para que ela pudesse trabalhar
enquanto nos observava para que nada de desagradável acontecesse, ou algo que
pudesse causar danos a algo, ou alguém. Enquanto ela fazia o seu trabalho de costureira,
nós, vez por outra passávamos correndo pela sala em que ela trabalhava, e havia
as sobras dos cortes por todo o ambiente, bem como linhas e elásticos.
E foi em uma destas passagens pelo local de
trabalho da mãe do meu amigo que eu, um menino que na época devia ter uns sete
anos, reparei no chão por entre os retalhos de tecido um pequeno pedaço de
elástico.
Não era um pedaço grande, devia ter no máximo
uns vinte centímetros, e ao avistar o elástico ele se abaixou e pegou e saiu
correndo e dizendo olha o que eu encontrei, exibindo o brinquedo “encontrado”
aos amigos. Logo em seguida guardou o achado no bolso e continuaram brincando
até o fim da tarde, quando por recomendação da minha mãe eu devia ir para casa
para banhar-se e aguardar o momento de jantar.
Aquele dia parecia deveras proveitoso, assim
pensava aquele menino quando ao final da tarde se encaminhava para sua casa,
brincou a tarde inteira com os amigos e o irmão, e ainda havia encontrado um
pedaço de elástico.
Espere um momento. Antes devo explicar o meu
contentamento pelo que “encontrei”.
Naquela época, crianças moradoras da periferia
de São Paulo inventavam um monte de brincadeiras, entre tantas, havia uma que
hoje não vejo com a mesma alegria de épocas passadas. Nós costumávamos pegar
aqueles elásticos de prender dinheiro, e também os palitos de fósforos que encontrávamos
pelo chão, que eram dobrados ao meio, e devo dizer que os melhores eram aqueles
que quando dobrado eles não se separavam, desfiava, mas não se faziam em dois.
E com os palitos dobrados e o elástico apoiado
no dedo polegar e no indicador tínhamos um estilingue, e naqueles anos o bairro
em que vivíamos não era tão povoado como hoje, e alguns moradores criavam
porcos e galinhas, e por este motivo havia também muitas moscas, e estas é que eram
nossas vítimas. É isso, atirávamos os palitos dobrados nas moscas, fazíamos uma
espécie de torneio para ver quem fazia mais moscas deixarem de existir, eca. É
verdade, não era uma brincadeira nem um pouco higiênica, mas, uma criança na
sua simples vontade de brincar sempre encontra uma forma de ocupar o tempo
ocioso e, é nestes momentos sempre surgem algumas traquinagens!
E voltando ao garoto que era e o meu achado, eu
estava aguardando a hora do jantar e enquanto isso, a traquinagem imperativa me
fez testar o novo “brinquedo”, e lá estava eu abreviando a já tão breve vida de
algumas moscas, quando de repente vi minha mãe parada na minha frente, e quando
meus olhos encontraram com os dela, ela me fez uma pergunta.
Aonde foi que você conseguiu isto?
Eu, um filho obediente e, acostumado a sempre dizer
a verdade, sequer hesitei em responder que o meu novo brinquedo havia sido encontrado
no chão da sala da costureira.
Após dizer isto eu já me preparava para dar fim
a mais uma desavisada mosca, e sem saber que havia dado a resposta errada, pois
minha mãe com um tapa desfez minha mira, e foi naquele momento, após ouvir o
estalo da sandália nada macia de minha mãe no meu braço eu tive o entendimento
que estava encrencado. Pois, logo a seguir
outra estampada da sola da sandália acompanhada de outra pergunta e, esta era deveras
mais difícil responder!
Quem foi que te deu este elástico?
E como
sempre eu gostava de ser verdadeiro, disse já iniciando um sonoro choro, que
ninguém me havia dado o elástico, e que eu havia achado no chão da sala da
costureira e, aumentei o som do choro logo que recebi a terceira estampada
daquela sandália tão resistente que os locais mais macios dos meus braços e
pernas, eu creio que por mais de um par de anos. A esta altura o brinquedo já
havia sido confiscado e o seguimento do interrogatório veio acompanhado de
outras doloridas chineladas, e, mais daquela tão sem resposta e odiada pergunta,
certamente as minhas respostas não eram as que ela, minha mãe esperava ouvir, bem
ao menos naquele instante tão dolorido!
Você se esqueceu do que eu e teu pai sempre
falamos aqui dentro de casa para você e seu irmão, que não se deve pegar nada
que não seja seu sem que alguém lhe ofereça. E se você pegou mesmo este
elástico, aonde você diz, não é achado, pois estava na casa da costureira, e se lá estava,
a ela pertence, e se ela não lhe ofereceu, você roubou, e isso nós
não fazemos, somos pobres, mas, jamais roubamos!
E junto a este discurso, o potente som do meu
choro de menino desesperado, vez por outra aumentava o volume, na tentativa de
demonstrar que as estampadas da sandália, além de doridas já estavam me
deixando cheio de pegadas e não somente por saber que ia ficar sem o brinquedo,
mas também por ouvir além das perguntas, e do som do encontro daquela malvada
sandália com meus braços e pernas, acreditem, ela minha mãe após ouvir o choro
em volume mais alto, me pedia para calar a boca dizendo, engole o choro, engole
o choro. E isto não era tudo, sim, tinha mais, ao fim da explicação de que não
foi um achado, ela me fez outra recomendação dolorosamente expressa, pois a
cada dolorida chinelada, uma frase era dita e assim se segui, e entre soluços,
e, as marcantes dores, eu tive a certeza, de que aquele dia, eu jamais esqueceria.
E com os braços e pernas parecendo pagina de
jornal, todo estampado com o formato as sola da sandália da minha querida,
porém naquele momento deveras zangada mãe, eu fui em direção à porta. Eu ainda
soluçava e meus olhos alagados de lágrimas que fui forçado a fazer verter não me deixavam enxergar o caminho que devia
percorrer direito, ainda assim caminhei para a rua. E fui descendo a ladeira
pela rua de terra, aqueles quase quinhentos metros foram caminhados em total
transe, ia tão absorto em meus pensamentos, na dor que sentia e na vergonha que
com certeza iria enfrentar por muitos dias, bem como no pedido de desculpa que
deveria fazer a bondosa senhora, dona do pretenso achado!
Tão distraído caminhava eu que somente percebi
que já havia chegado ao destino quando ouvi a voz da senhora me perguntando o
motivo de eu estar ali, já anoitecendo, diante dela, e chorando.
Sem que eu pudesse me conter reiniciei um
choramingo, e não era pela dor da surra, mas, por saber que o meu novo
“brinquedo” já não era mais meu!
E foi naquele momento que iniciei meu pedido de
desculpas aquela bondosa senhora, pedido e explicação sobre o pedido estes que
saíram intercaladas por aquele que já se tornava deveras irritante, soluçar.
E as palavras ditas entre os soluços que eram
dominantes, com medo e vergonha eu iniciei meu pedido de perdão, não por medo
da costureira, mas por imaginar ter aranhado a amizade das duas famílias, pois
eu sabia que a costureira agia da mesma maneira que agiu minha mãe. Senhora, eu
peço perdão por isto que fiz. Eu iniciei dizendo para a costureira. A minha mãe me mandou vir devolver isso, e
estiquei ao braço e abri a mão e expus a ela o motivo que até sua casa me levou
já anoitecendo. Isto eu peguei no chão da sua casa quando brincava, ela me mandou
devolver e lhe dizer que não foi achado, e tão pouco me pertence, pois não me
foi oferecido, e me pediu para pedir perdão por ter pegado o que lhe pertence,
e senhora, ela aguarda que, eu retorne com a sua resposta se me perdoa, ou não.
A costureira ficou entristecida pelo meu estado,
mas eu creio que como mãe que era também, ela não devia desmerecer a autoridade
da minha mãe. Ela pensou um breve instante, em seguida me disse que não era
necessário devolver, ela contou que havia percebido quando eu peguei, e sabia
para o que seria usado, pois, os filhos dela também faziam o mesmo. Ela me fez
estreitar os olhos e distender minha boca quase até as orelhas de alegria ao
dizer ainda que, eu estava perdoado, e eu devia prometer que nunca mais repetiria
reprovado ato, para não levar outra surra parecida, disse ainda que não
precisava que a minha mãe me castigasse daquele jeito por aquilo, mas, que eu
não devia me preocupar e nem ficar magoado com a minha mãe foi desta maneira que
minha mãe aprendeu, e, sabemos que somente ensinamos o que sabemos, e quase
sempre da mesma maneira que aprendemos e para minha dorida tristeza eu aprendi
da mesma maneira. Não vou negar que na época fiquei chateado, pois eu fiquei
deveras chateado, mas, hoje eu entendo todas as suras que me foram aplicadas,
olhando para trás, vendo como me comporto hoje, eu até sou capaz de agradecer
as marcas das sandálias e cintos que meus pais me tatuavam semana sim, semana
não, nossa, isso já são deveras saudades, sim, mas é também a consciência de
que foram de grande valia aquelas surras! E naquele momento eu, o menino me lembrei das
palavras ditas por minha mãe. E sempre após a dolorida aplicação daquela
“educação”, (risos) sim, se no passado eu chorei, hoje vejo que tantas lágrimas
vertidas não foram em vão, pois hoje me permitem lembrar e sorrir!
Um dia você vai me agradecer por estas chineladas,
você é meu filho, e eu prefiro que seja eu a surrar você hoje, pois não quero
que amanhã um estranho faça isso, filho meu nasceu para ser gente e não para
apanhar na rua de estranhos!
A sua mãe gosta muito de você, e por isso está
ensinando como deve ser, e não fique zangado com ela. Vá e diga a ela que nossa
amizade não vai se interromper por uma bobagem destas e não é necessário
impedir você de vir cá, e que você está perdoado e pode vir brincar sempre com
os meus filhos, pare de chorar e, leve o seu pedaço de elástico. E após me dar
um abraço e um beijo recomendou que eu dissesse para minha mãe que agora ela
realmente havia me presenteado com o causador daquela confusão. Ande, vá para
casa, que já está escurecendo!
Deveras muito bondosa, sim, era uma senhora
muito bondosa. Onde quer que esteja ela, eu desejo que esteja feliz!
Quantas vezes minha mãe levava eu, meu irmão e
minha irmã na casa dela e, após uma breve conversa entre elas, a bondosa
senhora estava anotando nossas medidas e após alguns dias lá estávamos nós, experimentando
novas vestimentas, bons tempos que somente me dói lembrar é das alfinetadas eu que
levava algumas vezes por não ficar devidamente quieto, sim, eram bons tempos!
Ah, enfim foi assim, ela como uma fada, a
bondosa costureira me fez retornar com o antes achado, e agora presenteado e,
bem, as chineladas não iam voltar atrás, ou serem retiradas, mas desta vez eu
esperava não ser surrado, por retornar com o presente, doado!
Pois é,
até aquele dia eu ainda não fazia ideia o quão valorosas foram todas aquelas
surras em meu viver, eu ainda não havia ouvido com atenção para perceber o
quanto aquelas palavras ditas por minha mãe me fariam se transformar em um ser
justo, claro que foi de um modo dolorido, mas, é como dizem, há males que nos
vem para o bem!
E desde aquela época este menino não esqueceu
os ensinamentos dos pais. Ser pobre não é vergonhoso, andar com uma roupa
velha, porém limpa não vai fazer com que lhe apontem na rua, mas se você rouba,
não importa como você se veste, pois sempre alguém na multidão vai gritar é ladrão,
e, isto sim é uma deveras desonra!
E nos
tempos atuais, alguns pais ensinam aos filhos que devem vencer sempre, que
respeito se consegue quando se tem muito dinheiro, e que ser pobre é um pecado,
enfim, ensinam aos filhos uma maneira de se tornarem egoístas, preocupados com
o próprio umbigo, e criam filhos que sequer sabem fazer amigos, pois não
respeitam nem a si próprios!
E assim percebi que, derramar aquelas e outras
lágrimas, não por livre querer, mas, o calor delas me escorrendo pelo rosto, eu
ainda hoje posso sentir, bem como ouvir as palavras proferidas por minha mãe, e
que me fizeram entender o real valor de muitas coisas, e da vida, que é muito
mais importante que tudo que conheço sobre esta terra!
Sotnas Odlabu
Oi, Sotnas! A costureira tinha razão. Sua mãe ensinou do jeito que aprendeu. Claro que não precisava bater tanto, afinal, você não fez por mal. Também passei por uma situação parecida por causa de uma tampinha de refrigerante, na época em que as tampinhas vinham com desenhos de personagens da Disney. Minha tia, que era costureira, achou uma e guardou numa gaveta. Eu tive a infeliz ideia de ir lá pegar. No mesmo dia, minha mãe me viu brincando com a tampinha, perguntou onde eu tinha conseguido, ficou furiosa, me deu uns tapas e me fez pedir desculpas e devolver na frente da família inteira. Foi uma humilhação inesquecível, mas não gerou trauma. Abraço!
ResponderExcluirOi Sotnas,que linda história e como nossas mães nos ensinaram bem amigo.
ResponderExcluirPobreza não põe mesa,como dizia minha avó,e a vergonha seria maior se você tivesse crescido sem os ensinamentos
de sua amada mãe,que ficaram até hoje como lindas recordações e o tornaram um homem digno,honesto e sem traumas.
Parabéns pelo texto e pela atitude de sua mãe.
bjs
Carmen Lúcia.
Caro amigo
ResponderExcluirPenso que uma
das maiores tragédias
dos dia de hoje,
é a formação de uma geração
fundamentada no egoísmo.
Fico a pensar no futuro,
e sinceramente,
temo por ele.
Parabéns pela preciosa
história,
vinda do coração
e escrita com a alma.
Cuide de quem você ama.
O amor é nosso maior compromisso com a vida.
Olá, estimado amigo, Stonás!
ResponderExcluirTudo bem com vocês? E o calorzinho aí continua? Aqui, temos muito frio e chuva.
Li seu texto, calmamente, e até voltei atrás, para reler algumas frases, que achei curiosas e emblemáticas.
"Ter berço" é a coisa mais importante para uma criança. Se forem dados bons ensinamentos, regras que têm de ser, sempre, cumpridas, teremos adultos de muito caráter.
A história do elástico, que não tinha roubado, e que depois, recuperou, devido à bondade da senhora, o marcou para sempre, mas positivamente. As surras de mãe e pai, facilmente, esquecemos.
Tenha dias bem felizes.
Abraços, para todos vocês, com carinho.
Falta muita educação no nosso Brasil hoje.
ResponderExcluirCadinho RoCo
Olá, meu amigo. Lendo a sua história, vejo como nossa vida era diferente. Respeito e educação era fundamental, mesmo pobres. Ou melhor: Era um dever! Tudo que hoje somos devemos a nossos pais. Hoje tudo é diferente! Para onde foram os valores? Obrigada amigo por partilhar! Bjos e todo carinho sempre. Bom fim de carnaval!!
ResponderExcluirBoa tarde, Sotnas. Realmente imagino como foi doída a surra, mas existem mães que não sabem fazer de outro modo e por isso assim elas agem.
ResponderExcluirNenhuma mãe decente quer ver seu filho com o produto de um roubo. Elas temem pelo futuro de seus filhos, pois se não cortam o mal enquanto pequenos, que estão em formação moral, como farão mais tarde?
Não devemos nos apropriar de nada que não seja nosso, isso é um fato.
Acredito que a lição foi aprendida e que nada semelhante aconteceu.
Educar nunca foi fácil e aprender também não.
Existe a necessidade extrema de conduzir o nosso filho em caminho da retidão.
Tenha uma semana de paz!
Beijos na alma!
Meu caro Sotnas
ResponderExcluirVenho agradecer a sua presença na minha «CASA» e o seu comentário, de que gostei imenso.
Que bom poder recordar a infância, a juventude... enfim, tudo que contribuiu para nos tornarmos nos adultos que somos.
Há episódios que nos marcaram que nunca mais esquecemos, e ficamos felizes por lembrá-los.
Tudo de bom lhe desejo, e a sua família também.
Continuação de boa semana
Beijinhos
Oi Sotnas. Tu do bem! Como os tempos mudam!?! Os valores mudam e umas das coisas que não deveria mudar mudam. Muda a importância de educar; de preparar os filhos para dignidade futura.
ResponderExcluirNa era em que estamos não podemos mais chinelar os filhos, será que realmente estamos dando a melhor educação !?
Tudo muda o tempo todo mas a essência que nos foi passada permanece, beijo Lisette.
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